sábado, 20 de fevereiro de 2010

Manual do Cangalheiro I

I capitulo

Teria apenas metade da idade e do tamanho que lhe fazia falta para ser um homem, quando seu pai, em toda a imponência daquela barba antiga e cheia de sabedoria, lhe entregou nas mãos um balde cheio de pregos tortos, ferrugentos, partidos. Ao receber da mão negra de seu pai aquele balde, não pode suste-lo nem nos braços, caindo-lhe nos pés como um peso morto, quebrando 2 dedos pequenos do pé direito do menino. Antes que o primeiro som saísse dos lábios da criança seu pai encarou-o, pousando um joelho na terra como faziam os cavaleiros de outrora e pegando-lhe no rosto rogou-lhe que não chorasse. De susto, apenas uma lágrima se verteu, mas nem um som se ouviu daquela boca escondida entre duas faces rosadas e ainda protegidas dos rigores do inverno.

“Vais entregar-me este balde cheio de pregos, quando estiverem todos direitos, como novos, ou nunca serás um homem” – Foi a frase fatídica que passou entre os pelos frisados do bigode farto e da pêra esguedelhada, daquele pai… daquele forte e austero pai.

Dias depois, manco e dorido mas não queixoso, rolou o cepo mais redondo que encontrou na pilha dos cavacos junto à corte das cabras, encontrou debaixo do balcão o sitio mais abrigado do vento para o colocar de pé e puxando do seu banco de ordenha favorito, aquele o avô lhe fez pelos anos, bordado e pintado de verde, sentou-se e encarou em terror o balde que cheio de pregos ferrugentos lhe parecia saído do próprio inferno.

Tomou na mão o seu martelinho, o único que a suas mãos pequenas abrangiam para levantar no ar e na outra tomou o primeiro prego, escolhendo de entre todos os que via ao cimo do balde, o mais torto. Elevou o martelinho no ar o mais alto que pode, tal como o pai fazia quando pregava as pranchas dos carros que fazia por encomenda, e… «Ffuuhh» … «Trac!». Sem saber como, sem conseguir perceber ou pensar sobre isso, uma intensa dor tomou-lhe todos os sentidos, uma dor igual à que lhe tomou de rajada os olhos e a boca quando o balde se lhe abateu nos pés e os seus dedos estalaram. Quebrou o polegar… no resalto que o martelinho fez naquele prego torto. E não era um prego qualquer, era um prego de ripas, dos mais duros… 7 centímetros de ferro torcido que fizeram o martelinho voar na direcção do pobre dedo!

Acorreu-lhe à memória nesse exacto momento, o mesmo modo como seu pai disse tão alto como um trovão “Maria! Acode aqui ao garoto! Tenho de trabalhar…” e sua mãe saiu pela porta esfregando as mãos num pano de linho velho. Cheirava a carne guisada e fumo da lareira aquela mãe que ele tanto amava e que era a única mulher que sabia por mulher, para além de casa, apenas havia visto outras mulheres na igreja, acompanhadas de seus homens e de outros meninos como ele, por vezes de meninas que se vestiam de um modo muito diferente do dele e seu pai dizia serem mulheres pequeninas. E foi essa mulher da sua vida, que o tomou nos braços depois se dar conta do sucedido e o levou no seu colo para dentro de casa.

Naquele momento os seus olhos estavam vidrados sobre o dedo que latejava mas parecia já não doer, apesar de vermelho e de parecer ferver de dentro para fora, pensar nos carinhos e no cheiro confortante da mãe fez com que não chorasse e se distraísse de toda a dor. Levantou-se então, arrumou com a mão que ainda estava sã o seu banco, colocou cuidadosamente por cima deste o martelinho e o malvado prego mas mais tarde acertar contas com o mesmo. Dirigiu-se coxeando para a porta de casa e nunca acaso, dá de caras com sua mãe que vinha a procurar por ele. “Olhe, minha mãe. Martelei este dedo sem querer…” e foi, naquele momento em que sua mãe lhe agarrou na mão com aquelas mãos frias de queijeira mas com o olhar mais terno e preocupado do mundo, que o menino se desfez em lágrimas silenciosas e soluços abafados. Sua mãe concluiu, pelos anos de azares que em todas as casas de aldeia se abatem, que o osso estava magoado mas não quebrado na totalidade. Deu então ao seu rebento, um pouco do seu regaço enquanto ambos estavam sentados em frente ao lume brando na lareira e este foi talvez, o ultimo pedaço de colo que esta criança teve.

No dia seguinte, de dedo enfaixado com uma tira comprida de tecido, cortada de uma camisa velha que seu pai usava para limpar as mãos após o trabalho, encarou o cepo, ainda quieto e firme tal como era seu propósito quando para isso foi escolhido, olhou o seu banco… e aquele malvado prego. Decidiu então sentar-se e tomar cuidado ao tentar de novo. O medo levou-o a começar devagarinho, com pequenas marteladas, ligeiras, a medo, depois mais rápidas, mas fraquinhas… Fracas demais, medrosas demais as marteladas para que o prego as sentisse sequer, não cedendo nem uma decima do centímetro nos seus meandros.

Encarando o prego, sentiu pela primeira vez frustração, como jamais havia sentido, nem mesmo quando os seus cabritos favoritos não vingavam de pequenos e o pai os enterrava debaixo da macieira do quintal, nem mesmo isso. O prego troçava daquele menino… e era ainda, de tantos, o primeiro.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Desculpa, se te digo isto

Devia ter dado o sinal de alerta no sino verde
Naquele dia de guerra intensa, teria o teu apoio
Mas decidi servir-me de um copo de miséria
E perdi o amor que trazia num cubo de gelo, ao peito
Desculpa-me… se agora digo isto, do coração…

As sombras na parede trepam-me pelos olhos
E encontro-me a sonhar, no regresso de um dia
Em que a lua vai estar vermelha, nuvens azuis…
Mas fico aqui a esperar-te junto ao telefone
Desculpa-me… se tarde, digo isto, do coração…

Vou à rua para comprar mais um bilhete
Para as corridas loucas da paixão descapotável
Sabendo que os travões estão avariados, mas…
Talvez deva ficar por aqui neste caminho…
Desculpa-me… se te disser isto, do coração…

E a lagarta sobe pela cerejeira despida, sem flor
Enquanto sente vontade de ter as costas na parede
Instável, sirvo-me de uma dose dupla de simpatia
Para que sintam tristeza, na minha insegurança…
Desculpa-me… se digo isto, sem coração…

Mulheres, douradas, escuras, todas me bateram
Para enterrar mais fundo o escopro, no meu coração
Mas nunca foram, nada mais que apostrofes…
Traços – espaços de tempo – em mim…
Desculpa-me… se te disse isto, no meu coração…

E não te sei dizer, se é uma sirene ou corneta
Mas toca-me dentro da cabeça uma musica,
Um aviso que a estrada é um perigo, mortal
E sei, que gostei mais de ti
Que as palavras podem algum dia dizer…

Desculpa-me… se nunca te digo isto, do coração…