sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Desconformidades

Somos termos apostrofados num marnel de letras mortas
Tudo se eclipsa num ponto de convergência incapaz
E pergunto… “Porque somos tão diferentes?”

Idoneidade preconcebida na superstição emocional
“Todos são iguais” …… “Todas são iguais”
Defesa no automatismo da rejeição pragmática

E delega-se ao silêncio, o que em dias era sono
Isolam-se na diáspora os motivos do esconjuro
“Somos demasiado diferentes, tu… e eu…”

Mas… não me convence
Que nas pequenas loucuras
Por diminutas que sejam
Encontro sempre sentidos

Partilhei sonhos, partituras
Até dores ainda vivas, torturas
E sei que se o fiz, tive razão

Mesmo que não passe de ilusão
Ou desilusão, no fim, no extremo

Tenho medo, mas não êxito…
Nem tremo…

Porque tudo o que quero é:
Saber, se ainda há quem se interesse…
Por este meu mundo…
Tão pequeno…

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Voo Picado

Sinto vontade
De correr este navio que se levanta
Como quem faz linhas sobre a água branca
Mar gelado, salvação e morte…
Queda, perdido à mera sorte…

E …

Navegar esta ilha contra um continente
Na testa do rochedo, encalhar permanente
Mergulha-la nos tormentos da Inquisição
Aninhar-me… talvez encontrar, posição…

E…

Enterrar os pés na montanha…
Ficar onde as arvores sabem o meu nome
As videiras sabem o meu cheiro
O rio conhece os meus pés
A terra tem a minha cor…

Por vezes esqueço-me de falar…

Porque um dia decidi voar no mastro
E guiar o barco terra a dentro sem olhar
….

Indivisível inferência sobre o inverno incontornável de incomparáveis negações no indelével sonhador inveterado… i… i… “… e cala-te… estás a falar demais… está frio, anda para dentro…”

E então lembro-me… “que”

Tão só e apenas…

Por vezes me esqueço de respirar…

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Esquizofilia Artistica

Um livro disse-me um dia:

“Cala-te! Que nada sabes, tu não sentes!”

… razão das páginas, certas palavras…



Ninguém sabe sem sentir!



Encontrei esse mesmo livro há dias:

“Como estás, que tens feito?”

… sem resposta, com o olhar apenas…

“Sou um transtorno residual…



defino-me a cada dia, pelo que fui,



sem cura.”

Um dia, hei-de escrever-te, prometi…

_____________________________

A pele, a membrana, a barreira rota da mente indivisa do impulso. Em todos os momentos encaro frontal e corajosamente as verdades que sobre mim se abatem de modo invisível, aquelas palavras gritantes que me comandam: “EU NÃO SOU DIFERENTE!”

Se nasci eu inteiro com duas mãos, se vim ao mundo eu todo com dois pés, dois olhos, dois ouvidos e esta minha boca… então agarro-me ao meu mundo, em que caminho nas direcções que são verdadeiras, vejo as cores e os seres que me perseguem, ouço-os constantemente gritar injurias contra mim e…

Porque não me deixam responder… com esta boca, tão minha…? Porque me prendem e me sujeitam a mil torturas? Porque me levaram os pássaros e as cores, e os sons do mundo, dos meus passos, das minhas mãos? Porque me roubaram a música? Onde estou? Porque aqui estou? Quem és? Porque aqui estás?

Miro o meu reflexo no chão, sou um espectro desviante e trémulo, as minhas mãos parecem água e os meus pés não se sujeitam ao meu comando, sentado num qualquer leito que não é meu, suporto o cheiro da minha saliva morta e dos cigarros que não me lembro de fumar… onde estão os meus cabelos negros e a minha barba… sei que aquele reflexo moribundo é de um homem doente, mas serei eu? Quem sou eu? Onde estou? Porque aqui estou?

Aquela figura branca voltou, tenho medo, muito medo, sei que me fará mal. Sei que fala de mim para o mundo, vem de noite roubar-me as ideias mais belas da minha mente, é única explicação para não conseguir mais escrever, nem pensar, nem sentir, nem saber quem amo nem quem me ama!

Tenho sede, quero água, estão-me a matar, esfaqueiam-me as nalgas sempre que falo, tenho medo de falar, não posso pedir nada, podem até chegar a matar-me esse alienígenas de branco, que falam de mim e tudo me roubam…

Porque me levam para uma sala cheia de loucos? Porque querem que jogue às cartas, se eu já não sei jogar! Roubaram-me as ideias e as jogadas! Tirem-me daqui… preciso de fumar…

Onde está o meu tabaco? Onde o meti? Não o tenho… tiraram-mo…

“opah..! Tu! Sim, tu enfermeiro, o meu tabaco?”


“Como assim não tens o meu tabaco?”


“Não me deste nada o meu tabaco, porque não me lembro, ninguém me deu o meu tabaco e eu agora não o tenho!”


“Pára de gozar comigo, roubas-me o tabaco e ainda gozas comigo…”


“Mas tenho calma o quê pah! Tas parvo! Tiras-me as coisas e agora não me dás a merda de um cigarro? Fodace!”


“Isso não…! Eu calo-me…”


“… mas isso não… por favor sr. Enfermeiro…”

Deu-me um cigarro, não é dos meus, não me sabe a nada, não é como os meus… o fumo deste cigarro não entra e não bate… escorrega-me pelo nariz e não me faz nada… sei que queria chorar mas não tenho lágrimas, de facto, os meus olhos nem sequer rodam ultimamente, ficam apenas estáticos…

“Não quero comer, deixa-me em paz…”


“Como assim, medicamentos? Vocês tão é sempre a drogar-me…”


“Puta que pariu, eu tomo a merda dos comprimidos, deixa-me em paz, fodace lá para as injecções…”

Roubaram-me hoje também o apetite… e o sabor do pão, da manteiga, do leite… o peixe mete-me nojo e a carne… a carne não sei de onde vem, mas o cheiro é de gente, não vou comer carne de gente…

“… não… deixa-me… ficar na cama… fecha… a porta…”


“… não tenho fome…”


“… não tenho sede…”


“… eu já não tenho… uma mãe… por isso ninguém me visita… não me mintas…”

Perdi as vontades, perdi os meus contos, as minhas historias, perdi tudo…

Eu, que fui o aluno mais inteligente da minha turma durante todos os anos em que me obrigaram a estudar.

Eu, que fui o académico mais popular da minha faculdade e arranjei emprego mais depressa… eu… que fui rei… até aos dias em que o nevoeiro assumiu o cheiro de tecidos queimados, e me rodeou cada vez mais nas ruas… o som dos passos das pessoas começou a ditar-me equações alfanuméricas “tic-toc 3, 4, 3, 4, 5… 5… 5… xxxiiisss… - Passa por cima seu estupor!”

As linhas das passadeiras pareciam engolir-me os pés e em todos os cafés onde entrasse sempre havia alguém que me conhecia e me olhava, sempre com algo para sussurrar sobre mim, mas nunca dizendo nada que indicasse que me queria cumprimentar, como se tivessem todos em conjura para me mal-falar…

E foi no dia em que os paralelos da avenida me subiram pelas pernas acima, mordendo e esfarrapando, enquanto eu estava colado ao banco de jardim que se derreteu para me reter dentro de si, que ao invés de ajudarem a sacudir aquele mal, me trouxeram para este sitio…

Em que nada é meu…

Nenhuma história é minha…

Eu sou um mito…

Roubaram-me a musica…

Roubaram-me os sabores…

Deram-me roupas largas e sapatos sem cordões…

Uma cama de borracha…

Um chão frio… um tecto sujo…

Dão-me tabaco de hora a hora…

Drogas 5 vezes por dia…

O relógio já não faz qualquer som…

Nada sinto… nada quero…



Nada tenho… nem ninguém… nem eu… nem tu…

Quem sou…? Quem és…?

“um fantasma, residual, do que um dia fui…”

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Denúncia

Se um dia...
um suspiro meu
Foi descuido, foi denúncia
De um sentimento proibido
Garanto, não foi renúncia
À amizade que te nutro
Muito menos,
 foi sem sentido…

Encontro nos sussurros mudos
As palavras cegas do que sinto
As sílabas fugitivas da palavra
Um segredo, longe do teu mundo

E se uma noite
um carinho teu
Foi mais que muito, foi o Universo

De um brotar de liberdade
Prometo, só é verdade…
Que levo no peito, escrito
O meu único e...
derradeiro verso



“Encontra-me, pois sabes onde estou”

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Discurso politico

 Num formato de tiros urbanos, mentes retorcidas em ilusões electrónicas
Sente-se nas balas o stress da rotação descontrolada das carências crónicas
Falta a agua com que lavar os focinhos alheios
Falta honra para encarar os focinhos sujos
Falta cara para assumir a honra no próprio focinho

E são os animais moribundos que rastejam da sarjeta à noitinha que me perguntam se tenho medo, ou se não tenho, se o meu dinheiro está no meu bolso ou na carteira! E pergunto eu com o sorriso de quem está prestes a entregar-se à noite escura sem resistência… “Será que ser merda já é uma carreira…?”

E sei que sou zero, e zero a zero vou saltando de zero em zero até atingir a profundidade plena do zero que é a vida e os seus porquês…

E estou cada vez mais certo, que faz falta perceber:
“É necessário saber que devemos passar mais tempo a foder uns com os outros que a foderem-se uns aos outros!” (será difícil de entender, ou tenho de ser ainda mais claro?)

Num modelo de flores férreas, almas tolas em desilusões metódicas
Ressentem-se de quem afirma que a maior carência, é: “educação controlada”
Falta a mama da mãe na boca dos filhos
Falta um filho com a mão na mão da sua mãe
Falta a mão pesada de um pai e de uma mãe

E são os pais das crianças perdidas, que não sabem o que lhe fazer, que me acusam de passar pela vida sem me aperceber que é difícil, essas gerações de quarentões com filhos paneleiros e mandriões, que me dizem, que na flor da minha juventude, tenho de me levantar e ir à luta, por tudo o que eles deixaram ir pelo cano abaixo…

Mas afinal, a quem cabe limpar a merda, não será a quem a cagou? E se for ainda muito pequeno, não será cargo de quem o pariu? E se for muito velho, não será dever de quem criou?

Então para que me chamam pela idade, com gritos de luta e igualdade, se tudo o que me entregam, são frutos podres e dividas da sociedade…

Deixem-me pelo menos, tentar ser feliz…

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Baixa Matinal

    Passam velhos estudantes pela baixa, caminham nos passos que as pernas aprenderam tantas vezes, a descer o quebra-costas na direcção do rio lento.

    Vendem-se cautelas aos desesperados que chocalham no bolso roto a parca fonte de mais um almoço feito de pão e peguilho, mais caros que a dignidade, pedem-se ajudas às senhoras queimadas de azul e olhos vendados de negro, vestidas também elas todas de negro e que poupam o dinheiro que não comeram em pão para investir em lojas americanas, de cigarro pendente parecem apodrecer enquanto caminham a flutuar em agulhas, também negras.

     Vejo velhos estudantes que carregam olhos queimados do fumo e faces descaídas, com a brida das obrigações vagas, com pastas cheias de nada e muitos papeis cheios de muitos outros nadas… que nada interessam a quem faz musica, por pão e peguilho, demasiado caros para quem quer apenas comer…

     Passam estudantes sem destino e vendem pastas de todos os tons e cores, de todos os símbolos, vendem-se também eles por mais um dia no encanto de não terem de ser gente, mais uns dias sem o peso de serem homens nem mulheres, nem velhos, nem crianças, apenas infantes de capas da cor da noite para que nela se confundam, noites frias, noites molhadas a tinto martelo e cevada fermentada…

     E passam mestres… doutores, nas artes de ter nada e ainda assim viver, nada, nada para comer, nada para vender…

    São apenas vultos tricanos que mandam para a cabra quem fala de menos e mandam para o cabrão quem fala demais… já nem pedem, já nem ligam…

    Vivem apenas Coimbra nos pés cansados, rua acima e rua abaixo, invisíveis, eternamente nus…

    E então alguém, sem um braço, pergunta-me se vou ficar muito tempo com as costas para a parede amarela da capela, pois estou no seu posto e não lhe pareço pedinte…

    Vou-me então…

    Nunca foi do meu feitio tirar da boca de um homem, seu peguilho… e seu pão…

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Mors Principium Est

Dar um passo em frente
Direcção profunda da cova incandescente
Na escuridão soturna da luz intermitente
Ainda quente
O teu corpo…

Tuas mãos, tua pele, teu olhar
Toda a fúria contida, ondas do mar
Teus lábios, o teu cabelo e o teu falar

Entrega-te, pois hoje nasce o espírito

Caminhar face ao adverso
Saber que é impedimento viver um inverso
Neste eterno aluimento das paredes do universo
E somente, mais um verso
As tuas palavras…

Teus ditos, teus jeitos, teu porte
Todo o amor perdido, vento norte…
Teu sorriso… teus lábios… teu aroma forte…

Rende-te, pois esta noite criou-se a alma

Finalmente, largar-se rotundo
Ter todas as certezas, irás no fim, estar no fundo
Encontrar riquezas, na infinitude do fim do mundo
Girar louco, por um segundo…
Os teus sonhos…

Teus encantos, tuas fantasias…
Que no rosto, sempre me trazias
Teus amores, os teus carinhos…

E finalmente foste, alma, espírito e corpo
Unidos…
Partindo eternamente para nenhuma direcção

Carregando na tua certeza que a morte…
É apenas mais um inicio… sem má intenção…


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Dedicado, a quem não está, não volta a estar.

sábado, 17 de abril de 2010

Distanciamento

Tenho olhos como um lobo
De luz vermelha, cor da alvorada
Vejo no breu as horas no relógio gasto
Poeira nas arestas, vidraça quebrada
De números caídos, 45 da noite
E penso em uivar…

Tenho os pés de um viajante
Calos que desceram o Norte, até Poente
Ando pelo escuro seguindo apenas o cheiro
Do orvalho que me diz tão claramente
Que no relógio são 67 da madrugada
E penso em me esconder…

Tenho numa alma passageira
Memórias que cortam qual faca amolada
Sinto-me então, calma, conscientemente
Absorver a primeira luz que raia abrasada
Em muito tempo, são 83 da manhã
E recordo-me…

O meu lugar não é aqui…
E não dormi mais esta noite…
Pois sem que desse conta, estou já
No dia de amanhã…


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Nota: "45 da noite" é uma figura de estilo criada originalmente por António Lobo Antunes, que serve o proposito de codificar as horas, no entanto basta que se leia, 4 horas e o numero 5, que corresponde a 25 minutos para obter a hora. Os restantes numeros seguem a mesma linha de pensamento.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Cigarrilha em Vão de Escada

Seguro entre os dedos defuntos
O fumo da soturna planta negra

E saboreio, à velocidade do fogo
O lento e finito prazer no vício

Solto entre os lábios silenciosos
Um sopro do mal menor na morte

Para me prender um pouco mais
À vida… na paz de não cogitar…

Vejo no tempo, esvanecer o ar apagado
O único indício no aroma de cigarrilha

E em vão, fico uma vez mais
Encostado à parede da tua porta…

Como um nada, com tudo para dizer…

Mas, sem coragem… para o fazer…

quinta-feira, 15 de abril de 2010

A Cadeira no Tecto - Sentado no Cansaço

Sentado, neste solitário quadro
Sob as tintas, que cobrem a obra, Singela
De um sistema de organização, Único
Em constante, transição da escrita
… não lida…
Para… a palavra…

Sentado, nesta pagina branca
Coloco letras a lado das minhas dores
Sem proveniência clara, definida
Em tributo, aos Capitães do Rio
… que corre…
Para onde… não sei…

Sentado, sobre o leme desta barca
Solto, os dedos das amarras
De uma terra seca, poeira, pobre
Em derrota, do meu comando
… dissipa-se…
Para quê… não vi…

Sentado, nos tapetes de Esparta vencida
Liberta-se a fúria do grito, na guerra
Sem que se escute o som, do choro
Em que memórias…

De quem queria apenas…
… apenas…
… para nada…
… para tudo…
Ser guia do seu pequeno mundo…

Ficam perdidas, então, no silencio…
As ideias de um homem…
Sentado no escuro...

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Segredos que Matam

Silêncios escuros vestidos de ar fino
O mar sopra toda a luz nos meus olhos
E ficam as gotas de sal que chegam…
aos lábios quentes

Como se morte fosse mais uma…
noite sem estrelas

A Cruz da simpatia mais nua, o hino
Que me queima as mãos impotentes
Tremem-me nos ouvidos as palavras
as mais carinhosas

Como se fossem varejeiras
sem destino, ao acaso

E eu tenho apenas por afecto, destino
Mais uma corda branca sobre o armário
Feita do linho mais áspero, estopa crua
que tu mordeste um dia

Para no final te poder cantar,
balançando da oliveira…

A ultima melodia…

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Manual do Cangalheiro I

I capitulo

Teria apenas metade da idade e do tamanho que lhe fazia falta para ser um homem, quando seu pai, em toda a imponência daquela barba antiga e cheia de sabedoria, lhe entregou nas mãos um balde cheio de pregos tortos, ferrugentos, partidos. Ao receber da mão negra de seu pai aquele balde, não pode suste-lo nem nos braços, caindo-lhe nos pés como um peso morto, quebrando 2 dedos pequenos do pé direito do menino. Antes que o primeiro som saísse dos lábios da criança seu pai encarou-o, pousando um joelho na terra como faziam os cavaleiros de outrora e pegando-lhe no rosto rogou-lhe que não chorasse. De susto, apenas uma lágrima se verteu, mas nem um som se ouviu daquela boca escondida entre duas faces rosadas e ainda protegidas dos rigores do inverno.

“Vais entregar-me este balde cheio de pregos, quando estiverem todos direitos, como novos, ou nunca serás um homem” – Foi a frase fatídica que passou entre os pelos frisados do bigode farto e da pêra esguedelhada, daquele pai… daquele forte e austero pai.

Dias depois, manco e dorido mas não queixoso, rolou o cepo mais redondo que encontrou na pilha dos cavacos junto à corte das cabras, encontrou debaixo do balcão o sitio mais abrigado do vento para o colocar de pé e puxando do seu banco de ordenha favorito, aquele o avô lhe fez pelos anos, bordado e pintado de verde, sentou-se e encarou em terror o balde que cheio de pregos ferrugentos lhe parecia saído do próprio inferno.

Tomou na mão o seu martelinho, o único que a suas mãos pequenas abrangiam para levantar no ar e na outra tomou o primeiro prego, escolhendo de entre todos os que via ao cimo do balde, o mais torto. Elevou o martelinho no ar o mais alto que pode, tal como o pai fazia quando pregava as pranchas dos carros que fazia por encomenda, e… «Ffuuhh» … «Trac!». Sem saber como, sem conseguir perceber ou pensar sobre isso, uma intensa dor tomou-lhe todos os sentidos, uma dor igual à que lhe tomou de rajada os olhos e a boca quando o balde se lhe abateu nos pés e os seus dedos estalaram. Quebrou o polegar… no resalto que o martelinho fez naquele prego torto. E não era um prego qualquer, era um prego de ripas, dos mais duros… 7 centímetros de ferro torcido que fizeram o martelinho voar na direcção do pobre dedo!

Acorreu-lhe à memória nesse exacto momento, o mesmo modo como seu pai disse tão alto como um trovão “Maria! Acode aqui ao garoto! Tenho de trabalhar…” e sua mãe saiu pela porta esfregando as mãos num pano de linho velho. Cheirava a carne guisada e fumo da lareira aquela mãe que ele tanto amava e que era a única mulher que sabia por mulher, para além de casa, apenas havia visto outras mulheres na igreja, acompanhadas de seus homens e de outros meninos como ele, por vezes de meninas que se vestiam de um modo muito diferente do dele e seu pai dizia serem mulheres pequeninas. E foi essa mulher da sua vida, que o tomou nos braços depois se dar conta do sucedido e o levou no seu colo para dentro de casa.

Naquele momento os seus olhos estavam vidrados sobre o dedo que latejava mas parecia já não doer, apesar de vermelho e de parecer ferver de dentro para fora, pensar nos carinhos e no cheiro confortante da mãe fez com que não chorasse e se distraísse de toda a dor. Levantou-se então, arrumou com a mão que ainda estava sã o seu banco, colocou cuidadosamente por cima deste o martelinho e o malvado prego mas mais tarde acertar contas com o mesmo. Dirigiu-se coxeando para a porta de casa e nunca acaso, dá de caras com sua mãe que vinha a procurar por ele. “Olhe, minha mãe. Martelei este dedo sem querer…” e foi, naquele momento em que sua mãe lhe agarrou na mão com aquelas mãos frias de queijeira mas com o olhar mais terno e preocupado do mundo, que o menino se desfez em lágrimas silenciosas e soluços abafados. Sua mãe concluiu, pelos anos de azares que em todas as casas de aldeia se abatem, que o osso estava magoado mas não quebrado na totalidade. Deu então ao seu rebento, um pouco do seu regaço enquanto ambos estavam sentados em frente ao lume brando na lareira e este foi talvez, o ultimo pedaço de colo que esta criança teve.

No dia seguinte, de dedo enfaixado com uma tira comprida de tecido, cortada de uma camisa velha que seu pai usava para limpar as mãos após o trabalho, encarou o cepo, ainda quieto e firme tal como era seu propósito quando para isso foi escolhido, olhou o seu banco… e aquele malvado prego. Decidiu então sentar-se e tomar cuidado ao tentar de novo. O medo levou-o a começar devagarinho, com pequenas marteladas, ligeiras, a medo, depois mais rápidas, mas fraquinhas… Fracas demais, medrosas demais as marteladas para que o prego as sentisse sequer, não cedendo nem uma decima do centímetro nos seus meandros.

Encarando o prego, sentiu pela primeira vez frustração, como jamais havia sentido, nem mesmo quando os seus cabritos favoritos não vingavam de pequenos e o pai os enterrava debaixo da macieira do quintal, nem mesmo isso. O prego troçava daquele menino… e era ainda, de tantos, o primeiro.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Desculpa, se te digo isto

Devia ter dado o sinal de alerta no sino verde
Naquele dia de guerra intensa, teria o teu apoio
Mas decidi servir-me de um copo de miséria
E perdi o amor que trazia num cubo de gelo, ao peito
Desculpa-me… se agora digo isto, do coração…

As sombras na parede trepam-me pelos olhos
E encontro-me a sonhar, no regresso de um dia
Em que a lua vai estar vermelha, nuvens azuis…
Mas fico aqui a esperar-te junto ao telefone
Desculpa-me… se tarde, digo isto, do coração…

Vou à rua para comprar mais um bilhete
Para as corridas loucas da paixão descapotável
Sabendo que os travões estão avariados, mas…
Talvez deva ficar por aqui neste caminho…
Desculpa-me… se te disser isto, do coração…

E a lagarta sobe pela cerejeira despida, sem flor
Enquanto sente vontade de ter as costas na parede
Instável, sirvo-me de uma dose dupla de simpatia
Para que sintam tristeza, na minha insegurança…
Desculpa-me… se digo isto, sem coração…

Mulheres, douradas, escuras, todas me bateram
Para enterrar mais fundo o escopro, no meu coração
Mas nunca foram, nada mais que apostrofes…
Traços – espaços de tempo – em mim…
Desculpa-me… se te disse isto, no meu coração…

E não te sei dizer, se é uma sirene ou corneta
Mas toca-me dentro da cabeça uma musica,
Um aviso que a estrada é um perigo, mortal
E sei, que gostei mais de ti
Que as palavras podem algum dia dizer…

Desculpa-me… se nunca te digo isto, do coração…

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A Morte No Artista

A configuração de um relâmpago, em ruptura

É nada mais que uma necessidade mecânica

De ligar a terra ao firmamento, rapidamente

Numa mínima fracção da coerência dinâmica

O tempo sofre uma explosão, trovão, tortura



E penso no seu brilho:



“Mesmo que me ignorem todos os defeitos

Ainda assim não estarei próximo de perfeito...”



E na maior irregularidade…



Perco anos embrenhado na sofisma, rochedo

Que tento talhar apenas com os dedos nus

Sem noção de que o céu, tão obviamente

Está vedado ao escultor dos poemas crus

Pois se escrevo é só por cisma, só por medo



De um dia encontrar:



“Aqui jaz uma Mente Obscura…

Que cegou e morreu, em busca de uma luz

Para dar mais brilho à sua Obscura Mente…”



Pois minhas palavras não cortam como clarão

Minhas ideias não iluminam olhos alheios

E o rochedo, será sempre a consciência, ou não

Que me pesa e me sufoca… mas, no fim…

Me dá razão!