quarta-feira, 6 de junho de 2012

Sapatos Pretos




O toque do som surdo de sola do seu calçado
“Toque, toque, toque, toque,” toquei, tocou…
“Toca-me”… estou tocado… …. e a sorrir em aparência…
Em face de uma ameaça de castração
“Estanha forma de me arrancar o coração”…
E o guardar, cativo, prisioneiro da mão
Honestamente… …..para lá da decência…
E de agrado me colocou um sorriso
De um nervoso, amedrontado riso
Mas ao pisar-me os dedos… com seus sapatos pretos…
Passa-me ao lado… e diz “Desculpe, não o vi”
Como se fosse invisível… ou transparente…

Atrevida de passar tão rente, que me puxou os nervos
Tal qual fossem suas mãos um pente
E diz… “Desculpe, não o vi”
“lpe, não o vi”
“,não o v”
“Não”
….
Mais uma repetição, na realidade mais…
Um acto de contrição…
Talvez fruto da alheia contribuição, da…
Constante negação…
“Desculpe, mas não”

E fartei-me, porque mais uma vez,

Apaixonei-me
E não houve justiça de facto para justificar castigo
Portanto, pensei, vou reclamar contigo
E dizer em grito revoltado…. Na voz mais doce que tenho…
“Não faz mal… tá perdoado”

Que fui eu fazer, agora vais, para não mais voltar
Com teu “toquei, toquei, toque, toque, toque, to… to… t…. t… t…. … … …”
Fica o som na minha mente da imagem de te ver as pernas andar…
Mas o som já se foi, e já não te vejo… nem teus sapatos pretos, nem teu cabelo
Cabelo que começo agora a recordar,
Pois nem tempo tive sequer de tocar… mas que sei
Tenho a certeza que cheira a flores, de magnólia
Ou baunilha, ou outra flor doce e aromática
Como mel, como a cor de mel dos teus olhos

“merda… devia ter memória fotográfica”
Passado o momento, o momento faleceu, assim mesmo
No sítio, no tempo e na circunstância onde nasceu, aí… morreu…

“porra, tenho de olhar onde ponho os pés” quase escorrego e caio fora do passeio, para a estrada onde os carros assobiam e rufam ao ritmo dos paralelos de granito, onde a campainha do metro é o único despertador para o transeunte comum acordar da hipnose citadina…

“já nem sei bem por onde estou a ir”, deveria ter virado na outra rua, tinha esse plano, mas o “toque” dos sapatos pretos apagou-me os planos do olhar, passei a encruzilhada porque… só para me cruzar com ela, não parei de andar… e agora já nem me lembro da cara dela… se é que cheguei a ver mais que os olhos dela… as pestanas dela… a sombra azulada, ou esverdeada, ou de outra cor que favoreça olhos cor de mel… nem sei…

Acendo um cigarro… porque ainda me sinto abalado e de cigarro na boca sou sempre um super herói, ganho “Plano”, “Coragem” e por vezes serve de fato, porque de cigarro na boca visto outra pessoa, que não tem medos e vive na linha entre a vida e a morte… “ai ai…” desmancho-me a rir de mim mesmo, qual tolinho no meio da rua, pelo tom sarcástico que uso para pensar sobre mim mesmo… “Se eu não gozar comigo, quem o fará”, já que sou um super herói…

Volto então a entrar na rota, com volta de 180 graus de telemóvel na mão para fingir que me surgiu algo novo, um facto desconhecido até aquele exacto momento mas que me abala o suficiente para ter de mudar de direção, mas a mulher das castanhas sabe que não foi isso que aconteceu… e sorri… e eu finjo que não vi… pois fico vermelho, com vontade de ficar azul… ou de novo transparente, só para que ela me pise de novo e me dia “Desculpe, não o vi”

Mas não vai voltar a acontecer, pois também ela volta para trás, rua acima… mas de mão dada, com quer que seja que foi encontrar rua abaixo… e agora já não vai haver desculpa… dobro a esquina e desfaço a minha encruzilhada, entrando na rua certa, segundo o plano traçado horas atrás, por uma mensagem de telemóvel que enviei…
“Tens?”
“no sitio do costume?”
“as 4”
“Ok”
E vejo pelo canto do olho, enquanto me encontro com o sitio do costume, e lhe ponho na mãos o que devo, que ela passa, de mão dada, com o que parecia uma homem ao longe, mas não é… e sorrio… “De que te tas a rir pah?”,
”…não me ligues, antes de vir tive a acabar o que tinha em casa” numa caixa de madeira na gaveta por baixo da televisão, porque era onde guardava os DVD’s, que já só eu comprava, por preguiça de sacar ou por concordar que bons filmes mereciam recompensa na forma de eu não os copiar… e porque gostava de os ver com a melhor qualidade, uma,outra e outra vez…

Ela passou… com os seus sapatos pretos… “Toque, toque, toque, toque,” e ela passou com as suas vans xadrez “Minha, minha, minha, minha”… e eu pensei… “…nunca na vida”

Senti-me menos mal por ser invisível, e afinal ela nem era assim tão bonita… era apenas alta, e de saltos, saltos nos seus sapatos pretos… que tocavam… e eu fui tocado pelo toque do seu andar… “Toque… toque… toque…”

terça-feira, 12 de julho de 2011

O Ciclo

Nunca na minúscula história…

…da humanidade reduzida deste ser,
Se deu ou se ficou provado, que:
“Mais que em palavras, é possível, ser amado.”

Claridade, propositada, obscurecida
Por vontade de não se libertar do leito
De ser eterno braço em redor do peito
Ficar… na paixão desmedida…
E apenas sentir, cada fôlego, que se perdeu

E perguntam-me as almas do purgatório:
“Onde está o homem? Para onde foi?”

Ao que returco com o mero silencio dos lábios
Porque é certo sabido para os grandes sábios
“Que o sonho do universo e tudo nele contido
É regressar ao que um dia foi, como prometido”
E o homem retorna ao conforto do seio e do ventre
Nos braços ternos de uma mulher que o ama
Forte… incondicionalmente…

E sonho renasce, rejuvenesce, regozija…
De ser rio que encontra o mar...
De um dia ser fonte de nova vida…
De Saber, a palavra “Amar”…

terça-feira, 31 de maio de 2011

Em ti, por ti, contigo

Expectativa infinda na obra inacabada
Uma vida aquém de o ser, talvez defunta
No toque dos teus olhos ganha fulgor rubro
Luz incandescente e luminescência ardente
Dormência, intuição de dor, a ferida aberta
A renúncia à entidade, existência devotamente…
Dedicada ao acto de não confiar, no amor… foge

Em ti, por ti, contigo…

Moção de matéria limitada, inanimada
Nuvens negras no céu carregado de cinzas
Velas que ardem sem destino, apenas um finito certo
Que sem se darem conta caminham no sentido de…
Despertar de afecções mútuas num dançar entre olhares
E um grito mudo que cerca duas bocas que se tragam
“Eu quero ser a chama, o clamor das brasas e do fogo”

Em ti, por ti, contigo…

Um exército de passos descontrolados
A força que arrasa as diferenças entre os corpos
E os liberta no desnível de uma cama que cai no chão
Sem controlo… morrer de beijos… de carícias…
Engasgar-se sem expirar de tanto gritar por dentro…
E um púlpito feito palco de um prazer sem fim

Em ti, por ti, contigo…

E fico… quero ficar… confiar, amar…
Depositar o conteúdo do meu peito…
Em ti… por ti… e o deixar, para sempre, contigo…

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Musica da Ausência

Numa noite, dotada do mais completo silêncio

Decidi saltar sobre o abismo com dois passos…

Como um Inverno de Vivaldi

Ou na calma dança chorosa de Ravel…



Caí ao vórtice da 54ª nota no número 5 da 23ª ópera:

Um “dó”… menor…



Pesar profundo por quem me falha nas horas de mutismo

Os desejos de autismo, um mundo cortado do ego, centrismo…

Ou desvio, ilusão prismática, privação… amor…



Talvez… dor…



Saudade…



Ou vontade…



De voltar a ver-te…                    quem sabe…



Foste, porque tinhas de ir

Eu parti, porque já não podia ficar

Chorei, porque não te tinha mais

Ainda lamento…

Não ter os teus olhos, para me olhar…

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Ao meu avô.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Desconformidades

Somos termos apostrofados num marnel de letras mortas
Tudo se eclipsa num ponto de convergência incapaz
E pergunto… “Porque somos tão diferentes?”

Idoneidade preconcebida na superstição emocional
“Todos são iguais” …… “Todas são iguais”
Defesa no automatismo da rejeição pragmática

E delega-se ao silêncio, o que em dias era sono
Isolam-se na diáspora os motivos do esconjuro
“Somos demasiado diferentes, tu… e eu…”

Mas… não me convence
Que nas pequenas loucuras
Por diminutas que sejam
Encontro sempre sentidos

Partilhei sonhos, partituras
Até dores ainda vivas, torturas
E sei que se o fiz, tive razão

Mesmo que não passe de ilusão
Ou desilusão, no fim, no extremo

Tenho medo, mas não êxito…
Nem tremo…

Porque tudo o que quero é:
Saber, se ainda há quem se interesse…
Por este meu mundo…
Tão pequeno…

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Voo Picado

Sinto vontade
De correr este navio que se levanta
Como quem faz linhas sobre a água branca
Mar gelado, salvação e morte…
Queda, perdido à mera sorte…

E …

Navegar esta ilha contra um continente
Na testa do rochedo, encalhar permanente
Mergulha-la nos tormentos da Inquisição
Aninhar-me… talvez encontrar, posição…

E…

Enterrar os pés na montanha…
Ficar onde as arvores sabem o meu nome
As videiras sabem o meu cheiro
O rio conhece os meus pés
A terra tem a minha cor…

Por vezes esqueço-me de falar…

Porque um dia decidi voar no mastro
E guiar o barco terra a dentro sem olhar
….

Indivisível inferência sobre o inverno incontornável de incomparáveis negações no indelével sonhador inveterado… i… i… “… e cala-te… estás a falar demais… está frio, anda para dentro…”

E então lembro-me… “que”

Tão só e apenas…

Por vezes me esqueço de respirar…

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Esquizofilia Artistica

Um livro disse-me um dia:

“Cala-te! Que nada sabes, tu não sentes!”

… razão das páginas, certas palavras…



Ninguém sabe sem sentir!



Encontrei esse mesmo livro há dias:

“Como estás, que tens feito?”

… sem resposta, com o olhar apenas…

“Sou um transtorno residual…



defino-me a cada dia, pelo que fui,



sem cura.”

Um dia, hei-de escrever-te, prometi…

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A pele, a membrana, a barreira rota da mente indivisa do impulso. Em todos os momentos encaro frontal e corajosamente as verdades que sobre mim se abatem de modo invisível, aquelas palavras gritantes que me comandam: “EU NÃO SOU DIFERENTE!”

Se nasci eu inteiro com duas mãos, se vim ao mundo eu todo com dois pés, dois olhos, dois ouvidos e esta minha boca… então agarro-me ao meu mundo, em que caminho nas direcções que são verdadeiras, vejo as cores e os seres que me perseguem, ouço-os constantemente gritar injurias contra mim e…

Porque não me deixam responder… com esta boca, tão minha…? Porque me prendem e me sujeitam a mil torturas? Porque me levaram os pássaros e as cores, e os sons do mundo, dos meus passos, das minhas mãos? Porque me roubaram a música? Onde estou? Porque aqui estou? Quem és? Porque aqui estás?

Miro o meu reflexo no chão, sou um espectro desviante e trémulo, as minhas mãos parecem água e os meus pés não se sujeitam ao meu comando, sentado num qualquer leito que não é meu, suporto o cheiro da minha saliva morta e dos cigarros que não me lembro de fumar… onde estão os meus cabelos negros e a minha barba… sei que aquele reflexo moribundo é de um homem doente, mas serei eu? Quem sou eu? Onde estou? Porque aqui estou?

Aquela figura branca voltou, tenho medo, muito medo, sei que me fará mal. Sei que fala de mim para o mundo, vem de noite roubar-me as ideias mais belas da minha mente, é única explicação para não conseguir mais escrever, nem pensar, nem sentir, nem saber quem amo nem quem me ama!

Tenho sede, quero água, estão-me a matar, esfaqueiam-me as nalgas sempre que falo, tenho medo de falar, não posso pedir nada, podem até chegar a matar-me esse alienígenas de branco, que falam de mim e tudo me roubam…

Porque me levam para uma sala cheia de loucos? Porque querem que jogue às cartas, se eu já não sei jogar! Roubaram-me as ideias e as jogadas! Tirem-me daqui… preciso de fumar…

Onde está o meu tabaco? Onde o meti? Não o tenho… tiraram-mo…

“opah..! Tu! Sim, tu enfermeiro, o meu tabaco?”


“Como assim não tens o meu tabaco?”


“Não me deste nada o meu tabaco, porque não me lembro, ninguém me deu o meu tabaco e eu agora não o tenho!”


“Pára de gozar comigo, roubas-me o tabaco e ainda gozas comigo…”


“Mas tenho calma o quê pah! Tas parvo! Tiras-me as coisas e agora não me dás a merda de um cigarro? Fodace!”


“Isso não…! Eu calo-me…”


“… mas isso não… por favor sr. Enfermeiro…”

Deu-me um cigarro, não é dos meus, não me sabe a nada, não é como os meus… o fumo deste cigarro não entra e não bate… escorrega-me pelo nariz e não me faz nada… sei que queria chorar mas não tenho lágrimas, de facto, os meus olhos nem sequer rodam ultimamente, ficam apenas estáticos…

“Não quero comer, deixa-me em paz…”


“Como assim, medicamentos? Vocês tão é sempre a drogar-me…”


“Puta que pariu, eu tomo a merda dos comprimidos, deixa-me em paz, fodace lá para as injecções…”

Roubaram-me hoje também o apetite… e o sabor do pão, da manteiga, do leite… o peixe mete-me nojo e a carne… a carne não sei de onde vem, mas o cheiro é de gente, não vou comer carne de gente…

“… não… deixa-me… ficar na cama… fecha… a porta…”


“… não tenho fome…”


“… não tenho sede…”


“… eu já não tenho… uma mãe… por isso ninguém me visita… não me mintas…”

Perdi as vontades, perdi os meus contos, as minhas historias, perdi tudo…

Eu, que fui o aluno mais inteligente da minha turma durante todos os anos em que me obrigaram a estudar.

Eu, que fui o académico mais popular da minha faculdade e arranjei emprego mais depressa… eu… que fui rei… até aos dias em que o nevoeiro assumiu o cheiro de tecidos queimados, e me rodeou cada vez mais nas ruas… o som dos passos das pessoas começou a ditar-me equações alfanuméricas “tic-toc 3, 4, 3, 4, 5… 5… 5… xxxiiisss… - Passa por cima seu estupor!”

As linhas das passadeiras pareciam engolir-me os pés e em todos os cafés onde entrasse sempre havia alguém que me conhecia e me olhava, sempre com algo para sussurrar sobre mim, mas nunca dizendo nada que indicasse que me queria cumprimentar, como se tivessem todos em conjura para me mal-falar…

E foi no dia em que os paralelos da avenida me subiram pelas pernas acima, mordendo e esfarrapando, enquanto eu estava colado ao banco de jardim que se derreteu para me reter dentro de si, que ao invés de ajudarem a sacudir aquele mal, me trouxeram para este sitio…

Em que nada é meu…

Nenhuma história é minha…

Eu sou um mito…

Roubaram-me a musica…

Roubaram-me os sabores…

Deram-me roupas largas e sapatos sem cordões…

Uma cama de borracha…

Um chão frio… um tecto sujo…

Dão-me tabaco de hora a hora…

Drogas 5 vezes por dia…

O relógio já não faz qualquer som…

Nada sinto… nada quero…



Nada tenho… nem ninguém… nem eu… nem tu…

Quem sou…? Quem és…?

“um fantasma, residual, do que um dia fui…”

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Denúncia

Se um dia...
um suspiro meu
Foi descuido, foi denúncia
De um sentimento proibido
Garanto, não foi renúncia
À amizade que te nutro
Muito menos,
 foi sem sentido…

Encontro nos sussurros mudos
As palavras cegas do que sinto
As sílabas fugitivas da palavra
Um segredo, longe do teu mundo

E se uma noite
um carinho teu
Foi mais que muito, foi o Universo

De um brotar de liberdade
Prometo, só é verdade…
Que levo no peito, escrito
O meu único e...
derradeiro verso



“Encontra-me, pois sabes onde estou”

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Discurso politico

 Num formato de tiros urbanos, mentes retorcidas em ilusões electrónicas
Sente-se nas balas o stress da rotação descontrolada das carências crónicas
Falta a agua com que lavar os focinhos alheios
Falta honra para encarar os focinhos sujos
Falta cara para assumir a honra no próprio focinho

E são os animais moribundos que rastejam da sarjeta à noitinha que me perguntam se tenho medo, ou se não tenho, se o meu dinheiro está no meu bolso ou na carteira! E pergunto eu com o sorriso de quem está prestes a entregar-se à noite escura sem resistência… “Será que ser merda já é uma carreira…?”

E sei que sou zero, e zero a zero vou saltando de zero em zero até atingir a profundidade plena do zero que é a vida e os seus porquês…

E estou cada vez mais certo, que faz falta perceber:
“É necessário saber que devemos passar mais tempo a foder uns com os outros que a foderem-se uns aos outros!” (será difícil de entender, ou tenho de ser ainda mais claro?)

Num modelo de flores férreas, almas tolas em desilusões metódicas
Ressentem-se de quem afirma que a maior carência, é: “educação controlada”
Falta a mama da mãe na boca dos filhos
Falta um filho com a mão na mão da sua mãe
Falta a mão pesada de um pai e de uma mãe

E são os pais das crianças perdidas, que não sabem o que lhe fazer, que me acusam de passar pela vida sem me aperceber que é difícil, essas gerações de quarentões com filhos paneleiros e mandriões, que me dizem, que na flor da minha juventude, tenho de me levantar e ir à luta, por tudo o que eles deixaram ir pelo cano abaixo…

Mas afinal, a quem cabe limpar a merda, não será a quem a cagou? E se for ainda muito pequeno, não será cargo de quem o pariu? E se for muito velho, não será dever de quem criou?

Então para que me chamam pela idade, com gritos de luta e igualdade, se tudo o que me entregam, são frutos podres e dividas da sociedade…

Deixem-me pelo menos, tentar ser feliz…

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Baixa Matinal

    Passam velhos estudantes pela baixa, caminham nos passos que as pernas aprenderam tantas vezes, a descer o quebra-costas na direcção do rio lento.

    Vendem-se cautelas aos desesperados que chocalham no bolso roto a parca fonte de mais um almoço feito de pão e peguilho, mais caros que a dignidade, pedem-se ajudas às senhoras queimadas de azul e olhos vendados de negro, vestidas também elas todas de negro e que poupam o dinheiro que não comeram em pão para investir em lojas americanas, de cigarro pendente parecem apodrecer enquanto caminham a flutuar em agulhas, também negras.

     Vejo velhos estudantes que carregam olhos queimados do fumo e faces descaídas, com a brida das obrigações vagas, com pastas cheias de nada e muitos papeis cheios de muitos outros nadas… que nada interessam a quem faz musica, por pão e peguilho, demasiado caros para quem quer apenas comer…

     Passam estudantes sem destino e vendem pastas de todos os tons e cores, de todos os símbolos, vendem-se também eles por mais um dia no encanto de não terem de ser gente, mais uns dias sem o peso de serem homens nem mulheres, nem velhos, nem crianças, apenas infantes de capas da cor da noite para que nela se confundam, noites frias, noites molhadas a tinto martelo e cevada fermentada…

     E passam mestres… doutores, nas artes de ter nada e ainda assim viver, nada, nada para comer, nada para vender…

    São apenas vultos tricanos que mandam para a cabra quem fala de menos e mandam para o cabrão quem fala demais… já nem pedem, já nem ligam…

    Vivem apenas Coimbra nos pés cansados, rua acima e rua abaixo, invisíveis, eternamente nus…

    E então alguém, sem um braço, pergunta-me se vou ficar muito tempo com as costas para a parede amarela da capela, pois estou no seu posto e não lhe pareço pedinte…

    Vou-me então…

    Nunca foi do meu feitio tirar da boca de um homem, seu peguilho… e seu pão…